Outros mundos, outras vidas

xilogravura medieval Recentemente, recebemos aqui na caixa postal da Revista Questão de Ciência algumas perguntas sobre pessoas que reconhecem ou se lembram de coisas com que, aparentemente, jamais tiveram contato: expressões numa língua estrangeira, obras de arte que nunca viram antes, eventos que ocorreram enquanto estavam dormindo ou em coma, eventos de “vidas passadas”. Esse tipo de pergunta é difícil de responder de modo genérico porque, no fim, cada caso é um caso: circunstâncias individuais variam bastante, e a explicação que se aplica a uma ocorrência pode ser terrivelmente inadequada em outras. Tendo dito isso, nunca é demais chamar atenção para a grande maleabilidade da memória humana. Nossas lembranças não funcionam como registros num disco de computador ou pendrive, que grava tudo e reproduz cópias exatas do conteúdo armazenado quantas vezes forem necessárias. Memórias são reconstruídas, de novo e de novo, cada vez que nos lembramos de um evento. Muitas vezes, informações que recebemos depois do ocorrido acabam misturadas à lembrança original. Psicólogos registram casos de testemunhas dos ataques de 11/9 nos Estados Unidos e que foram entrevistadas várias vezes – uma semana, um mês, um ano, etc. – depois dos atentados. Constatou-se que muitas dessas testemunhas, inconscientemente, iam incorporando às lembranças a “memória” de informações que, na verdade, não estavam disponíveis no momento ou no lugar do testemunho original. Lembranças também podem ser distorcidas, ou mesmo criadas, pelas expectativas das pessoas com quem conversamos. Experimentos conduzidos no século passado, por exemplo, demonstraram que é possível induzir uma pessoa a “lembrar-se” de eventos da infância que nunca ocorreram. Essa vulnerabilidade da mente a “implantes de memória”, produzidos principalmente por sugestão, pressão dos pares e indução por figuras de autoridade, descoberta pela psicóloga Elizabeth Loftus, tem implicações judiciais – e para as modalidades de psicoterapia que dependem da sondagem de um suposto “inconsciente” – que ainda não foram absorvidas como deveriam por todas as partes interessadas. Quando nos recordamos de uma informação, mas não de sua fonte – por exemplo, uma expressão em uma língua que não nos lembramos de ter estudado, o nome de uma obra de arte que acreditamos nunca ter visto antes – o fenômeno recebe o nome de “criptomnésia”, termo formado pelas palavras gregas “cripto” (escondido) e “mnese” (memória). Há vários episódios históricos onde criatividade, sugestão e criptomnésia, interagindo, causaram enorme sensação pública, episódios que foram vistos como prova de que alguma grande revelação ou revolução da condição humana estava prestes a ocorrer – antes de, ironicamente, caírem no esquecimento. Viagem a Marte A médium francesa, de origem húngara, Catherine-Elise Müller (1861-1929) ficou famosa no início do século 20, sob o pseudônimo de Hélène Smith, por conta de sua comunicação espiritual com o planeta Marte, onde encontrou almas transmigradas da Terra vivendo românticas aventuras. Müller/Smith chegou a psicografar um alfabeto marciano completo, que reproduzo abaixo, a partir do livro Error and Eccentricity in Human Belief, de Joseph Jastrow: alphabeto O estudo clássico do fenômeno Hélène Smith foi realizado pelo psicólogo suíço Théodore Flournoy (1854-1920), uma figura que chegou a influenciar o pensamento de C.G. Jung. Flournoy demonstrou que a "língua marciana" psicografada tinha a mesma estrutura do francês, e atribuiu os transes marcianos da médium a uma mistura de imaginação e criptomnésia – o fenômeno que ocorre quando demonstramos ter um conhecimento mas não nos lembramos de onde ou como o adquirimos. Quando Flournoy publicou seu livro sobre Smith, Da Índia ao Planeta Marte (outros transes da médium davam conta de encarnações no subcontinente indiano), em 1899, os dois temas – Índia e Marte – estavam na moda. O romance A Guera dos Mundos, de HG Wells, havia sido publicado em 1897, inspirado nas notícias sobre os "canais" de Marte que teriam sido avistados por astrônomos na Europa e nos Estados Unidos. A possibilidade de comunicação com seres inteligentes em Marte era seriamente considerada no meio científico. Já a Índia, vista como uma terra "exótica" e "mística", era alvo de intenso interesse ocidental, seja por conta da obra de autores como Rudyard Kipling, ou do apelo de doutrinas como a teosofia, que prometia fundir a sabedoria do Ocidente à do Oriente e cujos líderes diziam receber revelações de mestres hindus. Em seu livro A Doutrina Secreta, de 1888, a fundadora da teosofia, Helena Blavatsky, afirmava que seres espirituais originários do planeta Vênus haviam interferido na evolução da vida terrestre. Há mais de um século, Flournoy já via com desconfiança "revelações" que pareciam se encaixar bem demais no espírito dos tempos, preferindo atribuí-las à criptomnésia e à imaginação. Não são só as histórias que não fazem sentido que devem ser recebidas com ceticismo: as que parecem fazer sentido demais, segundo as crenças e preconceitos da época, também merecem escrutínio especial. Viagem a outra vida Mais próximo de nós no tempo está o caso da americana Virginia Tighe (1925-1995), que quando hipnotizada começava a falar com um forte sotaque irlandês e a relembrar uma “encarnação anterior” vivida na Irlanda, como uma mulher chamada Bridey Murphy. Quando Morey Bernstein (1919-1999), o hipnotizador responsável por extrair as memórias de Murphy da mente de Tighe, publicou o livro Em Busca de Bridey Murphy em 1956, a obra logo de tornou um best-seller. Como escreveu “The New York Times” (onde o livro permaneceu na lista de mais vendidos por 26 semanas), no obituário de Bernstein: Poucos meses depois da publicação, em janeiro de 1956, o livro criou um incêndio cultural, elevando o hipnotismo a algo como uma mania nacional e preparando o terreno para um posterior salto no interesse em reencarnação e mediunidade (...) a publicação começou com uma tiragem inicial, otimista, de 10 mil exemplares, mas as vendas vieram tão depressa que, em meados de março, mais de 200 mil exemplares haviam sido impressos. O impacto cultural da obra desdobrou-se em festas a fantasia “venha como você era”, onde os convidados deveriam usar o figurino de alguma “encarnação anterior”, e um filme, estrelado por Teresa Wright (1918-2005), ganhadora do Oscar de atriz coadjuvante de 1942. A revista Life, então uma das publicações mais populares dos Estados Unidos, chegou a divulgar a receita de um “drinque reencarnação”, à base de vodca e rum. Investigações conduzidas na Irlanda e nos Estados Unidos, no entanto, acabaram revelando que as memórias da “vida passada” de Virginia Tighe na verdade eram versões reelaboradas de lembranças de sua infância na cidade de Chicago, onde ela havia sido vizinha de uma imigrante irlandesa, Birdie Murphy. Os pais de Virginia também tinham laços familiares irlandeses: a tia favorita da menina tinha vindo da Irlanda. “Quando o hipnotista sugere que o paciente deve lembrar-se de vidas passadas, é obedecido”, escrevem Leonard Zusne e Warren Jones no livro Anomalistic Psychology. “Mesmo céticos quanto à reencarnação podem, sob sugestão, produzir narrativas verossímeis de vidas passadas”. Os autores prosseguem: “Que as lembranças de vidas passadas são feitas de informação obtida na vida atual é sugerido, por exemplo, pelo fato de que tais vidas ocorreram em culturas sobre as quais o paciente provavelmente tem informação, ou em civilizações míticas, como Marte ou Atlântida, sobre as quais informação factual é inexistente”. Viagem ao Além Casos de pessoas que supostamente “voltam da morte” com histórias para contar seguem padrões parecidos. Há alguns anos houve uma onda de livros sobre o assunto, como os best-sellers O Céu É de Verdade, de Todd Burpo e Lynn Vincent, de 2010, e Uma Prova do Céu, do médico americano Eben Alexander, de 2012. Antes disso, houve a febre das “experiências de quase morte” (NDEs, na sigla em inglês), desencadeada pelos relatos de caso coligidos pelo psiquiatra Raymond Moody na década de 70. A psicóloga britânica Susan Blackmore, que estuda esse tipo de fenômeno há décadas, escreve em seu livro mais recente sobre o assunto (Seeing Myself, de 2017) que “todas as características clássicas da NDE são causadas por excesso de atividade neural aleatória ou desorganizada, em diferentes partes do cérebro. Essa ativação aleatória pode ter diversas causas”, incluindo estresse, medo, falta de estímulo dos sentidos e estimulação elétrica ou magnética. Esta explicação atende ao chamado princípio da parcimônia, também conhecido como Navalha de Occam, em homenagem ao teólogo medieval inglês William de Occam (1285–1349). Há várias formulações alternativas para a regra, mas a mais conhecida é o latim entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (entidades não devem ser multiplicadas nem necessidade): no caso específico, se as visões de “quase morte” podem ser explicadas em termos do funcionamento bioquímico do cérebro, é desnecessário invocar mais “entidades” para dar conta do fenômeno, como espíritos ou um paraíso celeste. Levando em conta a maleabilidade da memória, o risco, sempre presente, de incorporar à lembrança conhecimento adquirido posteriormente, a possibilidade de criptomnésia e, em vários casos, a tentação de enfeitar a história, tornando-a muito mais “extraordinária” do que realmente é – como parece ter ocorrido, por exemplo, no caso de Eben Alexander – qualquer “multiplicação das entidades” torna-se desnecessária. Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) Fonte: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/apocalipse-

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